sábado, 9 de maio de 2009

Ordem q.b, sff...(Paúl da Marmeleira)


A fotografia em baixo mostra uma paisagem visível num percurso que costumo fazer em família, percurso de que nunca nos enjoamos, onde até, sempre que lá estamos, se afirma em nós uma intensa vontade de ali viver e de construir uma casa com vista para um magnífico jardim de autor nenhum.



E esta frase contém duas ideias cruciais: a casa e a ausência de autor. Dito de outras formas: a ordem (humana) e o caos (da natureza), a certeza desejada no meio da incerteza (bela mas perigosa). O finito e o infinito. A bela e familiar praia, o horizonte marítimo sem nome ou forma.

Para onde quer que vá, reparo que em mim nasce sempre uma atenção especial no que não é da ordem humana, como se em mim pulsasse um instinto que procura a riqueza que não se pode encontrar no seio da humanidade.

Aqui esse instinto satisfaz-se e lamenta que não possa aqui estar para sempre. Aqui o rasto humano dilui-se em múltiplas manifestações de pequenos ecossistemas rebeldes; não se desenha a brutal engenharia agrícola das grandes culturas geométricas, e as poucas (pequenas) que há, ladeiam em diálogo de ângulos rectos e linhas irregulares.

Apetece ver a toda a hora; cada olhar descobre um novo arbusto, uma nova combinação de copas de verdes diferentes, ali uma pequena mata impenetrável lado a lado com o olival e a vinha esquecidas. As canas que ladeiam os rios sinalizam a frescura do rio que corre a descoberto nos intervalos dos frondosos freixos.



É um sítio onde pode medrar a ilusão de não haver mais gente, a não ser outros, poucos, passantes como nós, onde nada humano se fixe e estrague aquilo que parece irromper a todo o instante- a natureza. Não é preciso muito pensar para admitir que de natureza pouco há aqui, há os átomos, as espécies, os elementos, digamos. A ordem que se estabelece tem a nossa régua e esquadro em todo o lado. Mas isto é como se fosse um zoo não confinado, um zoo ou jardim botânico sem muros, de beleza, animais, plantas, uma maravilhosa obra de generosidade, tolerância, respeito, admiração pelo que 4000 milhões de anos de evolução produziram. Como se alguém dissesse "sou humano, frágil, temeroso, em busca permanente de mais de tudo, e preciso também deste lugar para daqui tirar meu sustento, minha alegria de viver, mas sem isto, sem este vigor que brota da Terra e dos seus insondáveis mistérios, sem esta revelação permanente dos herdeiros das primeiras bactérias da sopa primitiva, sem vós, cores, cheiros, texturas, sombras do Tempo que aflora, não me sinto nada e chego a intoxicar com a trapalhada tecnológica com que encho o Mundo e arredores."


Todas estas criaturas são contemporâneas dos nossos pulmões e demais órgãos, talvez por isso precisemos deles para, senão respirar, sentir plenamente que respiramos, mesmo que se limitem, aparentemente, a cumprir seu destino meramente biológico, enquanto nós, filhos de deuses e provetas diversas, caminhemos para um sublime píncaro de conquista e glória- aliás, como sempre.

É um acaso este sítio existir. O Homem tolera apenas a Sua Beleza, a que cria em função, principalmente, de uma lógica visando um lucro qualquer, monetário ou anímico. Deixar existir e deslumbrar-se é cada vez mais raro, um luxo, dir-se-ia, com tanta boca para alimentar pensar em deixar bichos e mato medrar, que beleza há nisso?, uma beleza não prioritária, pelo menos prioritária não é, sendo que, por exemplo, a indústria de bulldozers e outros terraplanadores são muito mais belos e prioritários e, acima de tudo, necessários.

Este sítio existe porque pouco interesse se depositou aqui. Mas de certeza que alguém já congemina qualquer coisa, qualquer coisa que "valorize", "acrescente valor", "rentabilize", qualquer coisa que traga progresso e desenvolvimento a uma zona "deprimida". Quem sabe até um turismo rural, e se venda mais um bocadino de paraíso na Terra na forma de condomínio murado e hermético (a bactérias, vírus, ladrões e, se possível, pedintes) - e isto a propósito do desejo de ter aqui uma casa, que é meu em parte, mas de que facilmente abdico se comigo fizerem um pacto, o de que mais ninguém nem nada aqui deposita um tijolo.



















































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